Com a expectativa de mais um edital de concurso na área da educação para a Prefeitura de Santa Cruz do Sul a ser publicado na segunda quinzena deste mês, surge também mais uma oportunidade de ingresso no serviço público para candidatos negros (pretos e pardos) através das chamadas cotas raciais. A lei municipal que estabelece a reserva de 20 por cento das vagas para essa parcela da população completou em 2024 cinco anos de vigência.
De acordo com a coordenadora do Departamento de Gestão de Pessoas da Secretaria Municipal de Administração (Sead), Juliana Panke, a participação dos negros ainda é muito pequena nos concursos do município. Do montante de 24.231 candidatos inscritos em 2019, primeiro concurso em que a lei de cotas passou a valer, apenas 1368 estavam na condição de cotistas (pretos e pardos). “A participação de negros foi muito pequena, em muitos cargos não houve sequer um único candidato inscrito”, lamentou ela.
Juliana, que também é secretária do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir), acredita que é necessário incentivar as pessoas a buscar seus direitos. “Muita gente tem receio, vergonha e até medo do preconceito, constrangimento em ser apontado como alguém que está se valendo de um privilégio”, comentou.
Como a lei de cotas é um instrumento razoavelmente novo no âmbito municipal, não houve tempo suficiente para uma mudança no perfil dos servidores. Desde a sanção da lei, apenas um concurso foi realizado até então na prefeitura, em 2019. Durante os quatro anos seguintes um total de 108 aprovados tomaram posse, a maior parte em funções de caráter operacional, ocupando em primeiro lugar os cargos de agente administrativo, em segundo o de servente e em terceiro o de operário.
Esse é o caso do santa-cruzense Hemerson Correia, 36 anos, que desde julho deste ano está trabalhando na prefeitura como agente administrativo. Formado em advocacia, ele chegou a trabalhar na área e sentiu de perto o preconceito motivado pela cor da pele. “Trabalhei como advogado e senti o preconceito até dentro do Judiciário. É algo mais estrutural, não é tão escancarado mas existe e a gente vê que o tratamento é diferente”, contou.
Acostumado a ocupar espaços onde costuma ser minoria, Hermerson foi o único aluno negro em seu anuário de formatura e na prefeitura pode contar nos dedos os colegas que tem a mesma cor de pele que a sua. Nos últimos cinco anos vem prestando concursos e perguntado se teve algum constrangimento ao se inscrever como cotista, foi taxativo. “Não tive vergonha não, a Lei de Cotas Raciais não deixa de ser um privilégio, mas com certeza é um privilégio merecido”.
Com pouco mais de dois meses no emprego, Hemerson disse ter sido bem recebido pelos demais colegas servidores e afirmou estar se sentindo bem no novo ambiente. Para quem tem dúvidas sobre utilizar ou não o benefício da lei, ele deixa um recado. “Continuem insistindo, estudando e não abram mão porque é um direito justo e tem que ser utilizado”.
Entenda como foi criada a Lei de Cotas Raciais
Em 2018 a Prefeitura de Santa Cruz do Sul encaminhou para a Câmara de Vereadores projeto prevendo cotas para negros e pardos nos concursos públicos do município. Na época o projeto chegou a tramitar e recebeu um substitutivo propondo a troca das cotas raciais por cotas sociais, porém o projeto acabou vetado pelo prefeito Telmo Kirst.
Novamente encaminhado ao Legislativo em 4 de abril de 2019, estabelecendo as cotas raciais, dessa vez o projeto foi aprovado. Sancionada então, a Lei 8.181, de 24 de abril de 2019 passou a prever a reserva de 20% das vagas de concursos públicos da Administração Municipal para pessoas declaradamente negras (pretas e pardas). A aprovação da lei reproduziu em nível municipal a conquista expressada por meio da Lei Federal 12.990, de 9 de junho de 2014, que este ano completa 10 anos.
Um diferencial tem tornado Santa Cruz do Sul uma referência na aplicação da Lei de Cotas Raciais. Junto com ela foi criada também, de forma pioneira no interior do Estado, uma Comissão de Heteroidentificação, formada por servidores e membros do Conselho Municipal da Igualdade Racial (Compir) para averiguar a veracidade das declarações do candidato que se inscreve como cotista. O grupo é composto por sete integrantes.
Segundo a coordenadora do Departamento de Gestão de Pessoas da Secretaria Municipal de Administração (Sead), Juliana Panke, o trabalho foi reconhecido em todo o Rio Grande do Sul, tanto que a comissão foi convidada a participar na avaliação dos concursos públicos do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. “A Comissão de Heteroidentificação tem fundamental importância para garantir a igualdade racial e evitar fraudes na política pública de reserva de vagas”, ressaltou a coordenadora.
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