Ao menos três cidades que foram severamente atingidas pelas enchentes do Estado planejam mudar parte da área urbana para fora da região sujeita a inundações. São localidades de pequeno porte, situadas em calhas de rios, e que enfrentaram de dois a quatro desastres naturais em menos de um ano. Especialistas afirmam que outras cidades precisam seguir os exemplos de Barra do Rio Azul, Muçum e Cruzeiro do Sul e não reerguer as estruturas destruídas no mesmo lugar. Para eles, com as mudanças climáticas, novas enchentes virão.
Em coletiva de imprensa nesta sexta-feira, o governador Eduardo Leite afirmou ter solicitado que o levantamento de impactos da Defesa Civil também inclua a identificação de localidades que possam eventualmente não ter mais população fixa. “Isso está no nosso radar e no nosso plano de ação. (Teremos) Um olhar específico para aquelas cidades que terão a necessidade de um planejamento excepcional de transferência de locais inteiros, o que vai envolver um custo multibilionário para as necessidades de indenizações para as pessoas que vivem nesses lugares e transferência para um novo lugar, que deveria ser também urbanizado. Nós entendemos que é pertinente para algumas cidades, algumas localidades críticas. Aí vamos buscar a condição de fazê-lo”, disse Leite.
Preferência por áreas mais altas
Em Barra do Rio Azul, cidade de 1,7 mil habitantes no norte do Estado, o prefeito Marcelo Arruda (PTB) pretende mudar o comércio e as casas que estão nas margens dos rios Paloma e Azul para uma área mais distante, fora da região de inundações. A nova área urbana ficará a 600 metros do centro atual, em um terreno mais alto. O plano é dar os lotes como permuta pelos terrenos ocupados atualmente.
A convite do prefeito, especialistas da Universidade Regional Integrada de Erechim (URI Erechim) estiveram na cidade no último dia 5 e fizeram um levantamento para planejar a mudança. Nesta quinta-feira, o geógrafo Vanderlei Decian, coordenador do Laboratório de Geoprocessamento e Planejamento Ambiental da universidade apresentou o primeiro estudo para a realocação dos imóveis. “Estamos trabalhando para dimensionar as cotas de inundação e em projetos para melhorar o escoamento das águas desses rios”, disse Decian.
Um problema já detectado é que duas pontes, uma delas de 1950, com estrutura de pedra, construída no período da colonização da cidade, são estreitas e acabam represando a água durante as cheias. “Árvores e troncos que descem com a correnteza acabam parando nessas estruturas que são muito resistentes e formam uma espécie de dique”, explicou.
Conforme o especialista, a região foi colonizada por imigrantes italianos, alemães e poloneses que se estabeleceram próximos aos rios para se abastecer e usar a água para consumo dos animais ou geração de energia. Decian estima que, dos 32 municípios da região, à margem do Rio Uruguai, ao menos 15 têm problemas com inundações.
“São cidades pequenas em que as pessoas se conhecem e têm contato direto com o prefeito. Esses desastres mexem com a cabeça do gestor público. As gestões estão começando a se organizar para evitar e prevenir, senão os moradores vão embora. Ninguém que investir onde pode vir uma enchente e levar embora o investimento”, disse.
Além de Decian, a engenheira agrícola Raquel Paula Lorensi, especialista em hidrologia, a bióloga Franciele Rosset de Quadros, doutora em ecologia e as engenheiras civis Cristina Vitorino da Silva e Diniane Baruffi integram a equipe da URI Erechim que fazem os estudos para realocar parte da cidade de Barra do Rio Azul. A previsão é de que os estudos sejam concluídos em 30 dias para serem apresentados à Câmara e à população, através de audiências públicas. Ainda não há prazo para o início da mudança, mas o prefeito disse que não quer esperar uma nova enchente. Ele lembra que a primeira grande cheia aconteceu em 1953 e a última tinha sido em novembro do ano passado. “Nesta de agora a água subiu de 2 a 4 metros a mais e sabemos que as enchentes vão ficar mais frequentes. Estamos alinhando o cronograma com a direção da universidade, em conjunto com a Defesa Civil. Pedimos apoio também à Universidade Federal Fronteira Sul. Estou no segundo mandato e espero iniciar a mudança antes de deixar a prefeitura”, disse.
Arruda, que também é vice-presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul, espera conseguir uma linha de financiamento junto ao Governo Federal para que os moradores possam construir as novas casas. “Além da que já temos onde seria o distrito industrial, o proprietário de outra área nos ofereceu um terreno em local mais alto. Nosso pedido agora é por uma linha de financiamento de com juro zero ou subsidiado, com 24 meses de carência e 20 anos para pagar. Nossa cidade é próspera, com a economia calcada na agropecuária, mas estamos falando de famílias que tinham acabado de reconstruir suas casas e perderam tudo.”
O morador Anévio Minella, que teve uma de suas propriedades atingida pela enchente, ainda não conhece em detalhes o projeto da mudança, mas apoia a iniciativa do prefeito. “Estamos todos vivos, não houve mortes, graças a Deus, mas está mais do que na hora de se fazer alguma coisa. A gente sabe que esta não será a última enchente”, disse.
Decisão em consenso com as comunidades
Em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, que teve bairros inteiros arrasados pela correnteza do rio, a prefeitura já decidiu que as casas destruídas não serão reconstruídas no mesmo local. “Tivemos uma reunião e foi uma decisão de consenso com as comunidades. Vamos buscar uma área com até 60 hectares (cada hectare equivale a um campo de futebol) em lugar seco para mudar as famílias e o comércio. Vai ter escola, unidade de saúde, toda infraestrutura”, disse o secretário de Obras, Paulo Nascimento.
Cerca de 850 pessoas estão em abrigos e a estimativa é de que mil casas tenham sido destruídas nos bairros Passo de Estrela, Zwirtes, Bom Fim e São Miguel. A cidade, na margem direita do Rio Taquari, sofreu três grandes enchentes em menos de um ano. O pescador Marcos Ávila, de 42 anos, vai deixar a beira do rio, depois que a enchente levou embora sua casa – um casarão centenário, de paredes grossas, que ele achava que resistiria ao temporal.
Desde a enchente de setembro do ano passado, o prefeito de Muçum Maurício Trojan (MDB), já estudava a realocação de famílias e empresas que estavam em áreas inundáveis. Com o terceiro evento em menos de um ano, ele quer acelerar o processo, mas depende de recursos. “Nós já tínhamos uma política de desapropriação de terrenos em locais com infraestrutura para as empresas iniciarem a construção de seus pavilhões fora da área de risco. Cerca de dez empresas estavam em vias de se mudar, mas foram novamente atingidas. Talvez elas agora não tenham capacidade de reerguimento, mas vamos ajudar no possível”, disse.
Temporais vieram com grandes deslizamentos
Parte dos 4,6 mil habitantes que mais uma vez perderam as casas não quer ficar no mesmo local e muitas famílias planejam mudar de cidade, o que também preocupa o prefeito. “Muitas casas já estavam reformadas e 80% das famílias reestabelecidas. Agora, com o novo desastre, o futuro de Muçum é um grande ponto de interrogação”, afirmou.
Para o pesquisador Marcelo Dutra da Silva, professor de Ecologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), os prefeitos estão percebendo que a estratégia de reconstrução das cidades atingidas tem de vir acompanhada de prevenção e adaptação às medida climáticas.
Para ele, cidades inteiras podem ter de se mudar. “Têm algumas cidades que foram construídas e mantidas dentro de vales de inundação. As cidades do Vale do Taquari, por exemplo, sofreram uma enchente em 2022, duas em 2023 e voltaram a sofrer agora em 2024. E vão sofrer outras vezes se forem mantidas no mesmo lugar”, disse. As mudanças envolvem remover as estruturas das cidades que estão em áreas de risco e reconstruir em áreas mais seguras. “Precisamos devolver para a natureza os espaços mais sensíveis a alagamentos”, disse. Ele lembra que a partir de 2021 começou a fica claro que o extremo sul brasileiro teria um volume aumentado de chuva, que se intensifica a cada chegada do El Niño.
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